Remember to remember me
Standing still in your past
Floating fast like a hummingbird
Atenção: este é um texto sobre amor.
Como boa libriana, sempre tento equilibrar todos os lados de uma história. Por mais que ache mágico saber que toda sexta-feira (quase) toda música nova lançada no mundo vai estar ao meu alcance, também lamento que as novas gerações não vão guardar pra si aquele momento em que ouviram pela primeira vez aquele disco. Sabe quando você lembra onde, quando, como e por quê você estava em tal lugar ao ouvir aquela música que explodiu sua cabeça pra sempre? Essa sensação que nós, millennials, ainda colecionamos, não vai mais existir na vida de um monte de gente que veio ao mundo depois da gente. Toda sexta-feira elas automaticamente dão play no que foi lançado e é isso aí. Pensando bem, perde-se aí boa parte do feitiço.
Mas, de certa forma, tudo bem. Que bom que os mais jovens não precisaram apelar para o pulso único com aquele barulhinho insuportável de modem conectando depois da meia noite pra baixar no Audio Galaxy um arquivo cagado com todos os 36 minutos do “Pet Sounds” colados numa faixa só. Só que, por outro lado, eles nunca vão ter a sensação arrepiante de lembrar da primeira vez em que ouviram o CD do “Yankee Hotel Foxtrot”, do Wilco, que o irmão mais velho, jornalista como você sempre havia sonhado em ser, levou pra casa num dia ordinário de semana de 2002, logo que ele saiu no Brasil. Ainda mais se no mesmo pacote estava o “Gold”, do Ryan Adams que, de certa forma, também moldou seu caráter. Ok, isso foi muito específico. Mas os jovens de hoje nunca vão ter a memória de que ouviram na sequência dois discos recém-lançados de tamanho calibre no 5x1 do pai na sala de casa. Isso tudo enquanto liam sobre a nova moda do alt-country numa “Bizz” qualquer, folheando encartes e pensando que a vida em Chicago ou Nova York podia ser muito maior que naquele cubículo em Jacarepaguá.
Pois eu lembro perfeitamente que tinha 17 anos quando ouvi pela primeira vez a música de Jeff Tweedy, John Stirratt, Nels Cline, Glenn Kotche, Pat Sansone e Mikael Jorgensen. E eu lembro direitinho do desgraçamento mental que aquelas 11 músicas daquele disco com aquelas duas torres na capa que continuavam de pé produziram em mim. Fiquei completamente maluca, real. Foi uma parada meio AW/DW. Eu era uma antes do Wilco e outra completamente diferente depois. Tudo mudou pra mim dali em diante.
Eu tinha 20 anos recém-completados quando eles estrearam nos palcos brasileiros naquele Tim Festival de 2005. Paguei R$ 35 na meia-entrada, uma dinheirama absurda para uma universitária fudida na época, e aturei o Arcade Fire, banda que eu desprezava, pra ver esses caras tocarem ao vivo pela primeira vez. De camisetinha rosa de capuz e oclinhos de indie, vi Jeff Tweedy da grade imitar passarinho em “Hummingbird” pra logo depois me fazer ouvir “Jesus, Etc” finalmente ao vivo. De novo, muita coisa mudou em mim ali, naquele palco montado no MAM, no Rio. E se alguém duvidar, em algum almoxarifado da Abril tem o registro da transmissão da MTV que me mostrava jovem, toda serelepe, ali na grade, como se a minha vida tivesse começado pra valer naquele momento. E meio que foi isso mesmo.
Levou muito tempo — e muita vida, muita música — até o Wilco voltar ao Brasil. A minha amiga Mariana Neri até fez um site perguntando se eles estavam vindo, de tanto que demoraram a dar as caras por aqui novamente. Até que, em 2016, Jeff Tweedy e companhia anunciaram outros dois shows no Brasil. E não eram dois shows quaisquer: um era no Circo Voador, no Rio, o melhor palco do planeta (àquela altura eu já havia visto shows suficientes ao redor do mundo pra poder afirmar isso categoricamente) e outro no Popload Festival, em São Paulo. Garanti meus ingressos pros dois com meses de antecedência e… me separei de um casamento que havia sido muito feliz, mas que vinha me fazendo uma pessoa miserável nos últimos tempos, na véspera do show deles. Juntei os meus caquinhos e fui pra Lapa com um medo desgraçado do que a vida me reservava. Eu tava desse tamaninho, real. Já não sabia quem eu era ou que eu queria. Só sabia que eu não era mais a pessoa que havia sido até então. E que a partir dali teria muito o que ser.
Daquela noite de setembro não lembro de muita coisa, é verdade. Aqueles dias foram um borrão em meio a um turbilhão de sensações e sentimentos. Só quem encarou um divórcio consegue entender a neblina pesada que turva a sua mente na hora em que você decide deixar de ser dois pra aprender a ser só você. Lembro vagamente de distribuir abraços em pessoas que eu amo e que estão ao meu lado até hoje. Também tenho registros de falar demais a quem não devia, coisa que me fez viver consequências pra lá de desagradáveis. Desse dia também tenho vívida a memória de cantar “Jesus, Etc” (sempre ela e aquele violino inconfundível) ao lado da Mariana. E de encontrar os músicos da banda no Bar da Cachaça (aquele que a Luísa Sonza eternizou pelo Chico Moedas). Não nego, nem confirmo que recitei “she fell in love with the drummer” pro Glenn, que tava soltinho, soltinho naquela noite. Foi lindo. Ou pelo menos eu acho que foi. Pensando bem, deve ter sido. Sim. Foi.
Desde então, muitos rios passaram em minha vida até chegar aqui, em 2025. Se no meu primeiro show do Wilco eu tinha acabado de fazer 20, agora eu tô com quase 40. Fora que faz quase dez anos depois do nosso último encontro. Não sou mais a Lívia de 2016, muito menos a de 2005. Não dá nem pra começar a comparar. Muitas Lívias nasceram e morreram pra que essa pudesse chegar até aqui, aos trancos e barrancos. Agora, no dia do show do Wilco no C6 Fest, eu vivo em outro estado, outra capital. No segundo país, terceiro estado, sexta cidade. Nesse meio tempo, tantas vidas eu vivi, tanta coisa aconteceu ao som de “Either Way”, tanta paixão rolou com “I’m Always in Love”, tanto choro foi embalado ao som “Impossible Germany”, como se improvável não fosse o Japão, mas a luz ao fim do túnel. E é bonito ver como uma banda de seis marmanjos envelhece cheia dignidade enquanto eu, aqui do meu lado, tento sobreviver do jeito que dá. Até aqui deu tudo certo, é verdade. Não dá pra reclamar. E espero que continue não dando. Que meu próximo show do Wilco não demore uma década, muito menos tanta vida, pra acontecer. Mas que, se demorar, estarei de coração aberto registrando tudo o que acontecer daqui em diante, como parte dessa vidinha mais ou menos que eu insisto em viver demais.
Talvez a grande curiosidade seja que eu também comprei, na Sensorial, aqui em SP, o Yankee Hotel Foxtrot na mesma sacolinha que o disco do Ryan Adams. E textos assim, que nos levam a lugares, eras, pessoas que fomos, são textos que me inspiraram desde sempre. Sexta-feira, a Vera Magalhães falou do disco novo do Ben Kweller e eu atravessei os rios de lava que surgem pós divórcio e mandei pra mãe dos meus filhos, lembrando com algum afeto de quando a gente, namorados, ouvia o disco que tinha sha sha…
As obras dessas bandas e artistas que marcam nossa juventude acabam virando mais do que só música, né? São tipo testemunhas silenciosas (talvez "silenciosas" não seja bem a palavra, rs) da nossa vida. A gente ouve "aquele" disco pela primeira vez num certo momento e tal música (ou mesmo o álbum todo) gruda na gente, vira um emblema daquele tempo.
A vida segue seu caminho, a gente cresce, muda de cidade, passa por perrengues, vive amores, choros. E a banda continua lá. As músicas viram trilha sonora pro divórcio, pras novas paixões, pros momentos de incerteza, pras vitórias.
Essa relação é muito forte. Músicas acabam se misturando com nossa própria história, com nossas diferentes versões que nasceram e morreram ao longo do tempo. Ancoragem afetiva? rs
Só conhecia uma música da Wilco, que é a Impossible Germany. Nem lembro quem me mostrou. Nossa, faz muito tempo... Talvez dizer que conheço seja muito. Se ouvi três vezes foi muito. Simpatizei bem na ocasião, mas mesmo esse sentimento é uma memória longínqua. Muito bom ler seu texto, Liv. Bacana conhecer as trilhas sonoras das vidas alheias. Dá uma profundidade extra ao existir. Um abraço e obrigado por compartilhar! =)